domingo, fevereiro 25, 2007

O sonho da casa própria

Eu sei que é obsoleto falar sobre o sonho da casa própria. E como todo ignorante invertebrado e acéfalo ria as gargalhadas as emoções alheias, principalmente aquelas pessoas humildes que pareciam no programa Silvio Santos e recebiam a chave da sua moradia.

Estes, por muitas vezes, eram trabalhadores que recebiam salários ridiculos, e agraciados pelo imóvel se derramavam em lágrimas. Quando meus pais, compraram sua única casa, eu pensei que pobre, dizer que é o dia mais feliz da vida por ter comprado uma casa própria !!!! como são sem ambição.

Meu avô afirmou a este neto, que quando comprou o terreno da sua casa, foi o dia que ele sentiu-se mais homem na acepção da palavra.

E tudo isso era idiotizado pelo adolescente arrogante, que achava tudo pouco, hoje eu sei como é dificil ter as coisas e principalmente sua casa própria, nem que seja a mais humilde de todas.

domingo, fevereiro 18, 2007

Versos do poeta Patativa do assaré

A terra dos posseiros de Deus

Esta terra é desmedida
e devia ser comum,
Devia ser repartida
um toco pra cada um,
mode morar sossegado.

Eu já tenho imaginado
Que a baixa, o sertão e a serra,
Devia sê coisa nossa;
Quem não trabalha na roça,
Que diabo é que quer com a terra?

domingo, fevereiro 11, 2007

Franz Kafka, um mito

Eu realmente nunca escondi que sou um ardoroso admirador do Tcheco, que sempre escreveu em alemão, Franz Kafka.

Ele dispunha de um talento para descrever a natureza Humana e principalmente entre os entes queridos, algum dia, denominada familia. Segue um techo de A metamorfose:

A METAMORFOSE

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar.Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.


Que me aconteceu? - pensou. Não era nenhum sonho.

O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado, desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada.

Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia!

Gregório desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado - ouviam-se os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio? - cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes experimentara.


Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório propriamente dito, e ainda por cima há ainda o desconforto de andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos.Diabos levem tudo isto! Sentiu uma leve comichão na barriga; arrastou-se lentamente sobre as costas, - mais para cima na cama, de modo a conseguir mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que estava rodeado de uma série de pequenas manchas brancas cuja natureza não compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com uma perna, mas imediatamente a retirou, pois, ao seu contato, sentiu-se percorrido por um arrepio gelado.


Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo, pensou, deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros comerciantes que vivem como mulheres de harém.Por exemplo, quando volto para o hotel, de manhã, para tomar nota das encomendas que tenho, esses se limitam a sentar-se à mesa para o pequeno almoço. Eu que tentasse sequer fazer isso com o meu patrão: era logo despedido. De qualquer maneira, era capaz de ser bom para mim - quem sabe? Se não tivesse de me agüentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e lhe falar exatamente o que penso dele.


Havia de cair ao comprido em cima da secretária! Também é um hábito esquisito, esse de se sentar a uma secretária em plano elevado e falar para baixo para os empregados, tanto mais que eles têm de aproximar-se bastante, porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que os meus pais lhe devem - o que deve levar outros cinco ou seis anos -, faço-o, com certeza.


Nessa altura, vou me libertar completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque o meu trem parte às cinco.

Olhou para o despertador, que fazia tique-taque na cômoda. Pai do Céu! - pensou. Eram seis e meia e os ponteiros moviam-se em silêncio, até passava da meia hora, era quase um quarto para as sete.

O despertador não teria tocado? Da cama, via-se que estava corretamente regulado para as quatro; claro que devia ter tocado. Sim, mas seria possível dormir sossegadamente no meio daquele barulho que trespassava os ouvidos? Bem, ele não tinha dormido sossegadamente; no entanto, aparentemente, se assim era, ainda devia ter sentido mais o barulho. Mas que faria agora?

O próximo trem saía às sete; para o apanhar tinha de correr como um doido, as amostras ainda não estavam embrulhadas e ele próprio não se sentia particularmente fresco e ativo. E, mesmo que apanhasse o trem, não conseguiria evitar uma reprimenda do chefe, visto que o porteiro da firma havia de ter esperado o trem das cinco e há muito teria comunicado a sua ausência. O porteiro era um instrumento do patrão, invertebrado e idiota. Bem, suponhamos que dizia que estava doente? Mas isso seria muito desagradável e pareceria suspeito, porque, durante cinco anos de emprego, nunca tinha estado doente.


O próprio patrão certamente iria lá a casa com o médico da Previdência, repreenderia os pais pela preguiça do filho e poria de parte todas as desculpas, recorrendo ao médico da Previdência, que, evidentemente, considerava toda a humanidade um bando de falsos doentes perfeitamente saudáveis. E enganaria assim tanto desta vez? Efetivamente, Gregório sentia-se bastante bem, à parte uma sonolência que era perfeitamente supérflua depois de um tão longo sono, e sentia-se mesmo esfomeado.


À medida que tudo isto lhe passava pela mente a toda a velocidade, sem ser capaz de resolver a deixar a cama - o despertador acabava de indicar um quarto para as sete -, ouviram-se pancadas cautelosas na porta que ficava por detrás da cabeceira da cama.- Gregório - disse uma voz, que era a da mãe -, é um quarto para as sete. Não tem de apanhar o trem?


Aquela voz suave! Gregório teve um choque ao ouvir a sua própria voz responder-lhe, inequivocamente a sua voz, é certo, mas com um horrível e persistente guincho chilreante como fundo sonoro, que apenas conservava a forma distinta das palavras no primeiro momento, após o que subia de tom, ecoando em torno delas, até destruir-lhes o sentido, de tal modo que não podia ter-se a certeza de tê-las ouvido corretamente. Gregório queria dar uma resposta longa, explicando tudo, mas, em tais circunstâncias, limitou-se a dizer:- Sim, sim, obrigado, mãe, já vou levantar.


A porta de madeira que os separava devia ter evitado que a sua mudança de voz fosse perceptível do lado de fora, pois a mãe contentou-se com esta afirmação, afastando-se rapidamente. Esta breve troca de palavras tinha feito os outros membros da família notarem que Gregório estava ainda em casa, ao contrário do que esperavam, e agora o pai batia a uma das portas laterais, suavemente, embora com o punho.

- Gregório, Gregório - chamou -, o que você tem?

E, passando pouco tempo depois, tornou a chamar, com voz mais firme:
- Gregório! Gregório!

Junto da outra porta lateral, a irmã chamava, em tom baixo e quase lamentoso:
- Gregório? Não se sente bem? Precisa de alguma coisa?
Respondeu a ambos ao mesmo tempo:

- Estou quase pronto - e esforçou-se o máximo por que a voz soasse tão normal quanto possível, pronunciando as palavras muito claramente e deixando grandes pausas entre elas. Assim, o pai voltou ao breve almoço, mas a irmã segredou:

- Gregório, abre esta porta, anda.

Ele não tencionava abrir a porta e sentia-se grato ao prudente hábito que adquirira em viagem de fechar todas as portas à chave durante a noite, mesmo em casa.

A sua intenção imediata era levantar-se silenciosamente sem ser incomodado, vestir-se e, sobretudo, tomar o breve almoço, e só depois estudar que mais havia a fazer, dado que na cama, bem o sabia, as suas meditações não levariam a qualquer conclusão sensata. Lembrava-se de muitas vezes ter sentido pequenas dores enquanto deitado, provavelmente causadas por posições incômodas, que se tinham revelado puramente imaginárias ao levantar-se, e ansiava fortemente por ver as ilusões desta manhã desfazerem-se gradualmente.


Não tinha a mais pequena dúvida de que a alteração da sua voz outra coisa não era que o prenúncio de um forte resfriado, doença permanente dos caixeiros-viajantes.

Libertar-se da colcha era tarefa bastante fácil: bastava-lhe inchar um pouco o corpo e deixá-la cair por si. Mas o movimento seguinte era complicado, especialmente devido à sua invulgar largura. Precisaria de braços e mãos para erguer-se; em seu lugar, tinha apenas as inúmeras perninhas, que não cessavam de agitar-se em todas as direções e que de modo nenhum conseguia controlar.

Quando tentou dobrar uma delas, foi a primeira a esticar-se, e, ao conseguir finalmente que fizesse o que ele queria, todas as outras pernas abanavam selvaticamente, numa incômoda e intensa agitação. Mas de que serve ficar na cama assim sem fazer nada, perguntou Gregório a si próprio.


Pensou que talvez conseguisse sair da cama deslocando em primeiro lugar a parte inferior do corpo, mas esta, que não tinha visto ainda e da qual não podia ter uma idéia nítida, revelou-se difícil de mover, tão lentamente se deslocava; quando, finalmente, quase enfurecido de contrariedade, reuniu todas as forças e deu um temerário impulso, tinha calculado mal a direção e embateu pesadamente na extremidade inferior da cama, revelando-lhe a dor aguda que sentiu ser provavelmente aquela, de momento, a parte mais sensível do corpo.

Visto isso, tentou extrair primeiro a parte superior, deslizando cuidadosamente a cabeça para a borda da cama. Descobriu ser fácil e, apesar da sua largura e volume, o corpo acabou por acompanhar lentamente o movimento da cabeça. Ao conseguir, por fim, mover a cabeça até à borda da cama, sentiu-se demasiado assustado para prosseguir o avanço, dado que, no fim de contas caso se deixasse cair naquela posição, só um milagre o salvaria de magoar a cabeça. E, custasse o que custasse, não podia perder os sentidos nesta altura, precisamente nesta altura; era preferível ficar na cama.


Quando, após repetir os mesmos esforços, ficou novamente deitado na posição primitiva, suspirando, e viu as pequenas pernas a entrechocarem-se mais violentamente que nunca, se possível, não divisando processo de introduzir qualquer ordem naquela arbitrária confusão, repetiu a si próprio que era impossível ficar na cama e que o mais sensato era arriscar tudo pela menor esperança de libertar-se dela.

Ao mesmo tempo, não se esquecia de ir recordando a si mesmo que era muito melhor a reflexão fria, o mais fria possível, do que qualquer resolução desesperada. Nessas alturas, tentava focar a vista tão distintamente quanto podia na janela, mas, infelizmente, a perspectiva da neblina matinal, que ocultava mesmo o outro lado da rua estreita, pouco alívio e coragem lhe trazia. Sete horas, disse, de si para si, quando o despertador voltou a bater, sete horas, e um nevoeiro tão denso, por momentos, deixou-se ficar quieto, respirando suavemente, como se porventura esperasse que um repouso tão completo devolvesse todas as coisas à sua situação real e vulgar.

A seguir, disse a si mesmo: Antes de baterem as sete e um quarto, tenho que estar fora desta cama. De qualquer maneira, a essa hora já terá vindo alguém do escritório perguntar por mim, visto que abre antes das sete horas. E pôs-se a balouçar todo o corpo ao mesmo tempo, num ritmo regular, no intuito de rebocá-lo para fora da cama.


Caso se desequilibrasse naquela posição, podia proteger a cabeça de qualquer pancada erguendo-a num ângulo agudo ao cair. O dorso parecia ser duro e não era provável que se ressentisse de uma queda no tapete. A sua preocupação era o barulho da queda, que não poderia evitar, o qual, provavelmente, causaria ansiedade, ou mesmo terror, do outro lado e em todas as portas. Mesmo assim, devia correr o risco.


Quando estava quase fora da cama - o novo processo era mais um jogo que um esforço, dado que apenas precisava de rebolar, balouçando-se para um lado e para outro -, veio-lhe à idéia como seria fácil se conseguisse ajuda. Duas pessoas fortes - pensou no pai e na criada - seriam largamente suficientes; não teriam mais que meter-lhe os braços por baixo do dorso convexo, levantá-lo para fora da cama, curvarem-se com o fardo e em seguida ter a paciência de o colocar direito no chão, onde era de esperar que as pernas encontrassem então a função própria. Bem, à parte o fato de todas as portas estarem fechadas à chave, deveria mesmo pedir auxílio? A despeito da sua infelicidade não podia deixar de sorrir ante a simples idéia de tentar.


Tinha chegado tão longe que mal podia manter o equilíbrio quando se balouçava com força e em breve teria de encher-se de coragem para a decisão final, visto que daí a cinco minutos seriam sete e um quarto... quando soou a campainha da porta. É alguém do escritório, disse, com os seus botões, e ficou quase rígido, ao mesmo tempo que as pequenas pernas sé limitavam a agitar-se ainda mais depressa. Por instantes, tudo ficou silencioso. Não vão abrir a porta, disse Gregório, de si para si, agarrando-se a qualquer esperança irracional. A seguir, a criada foi à porta, como de costume, com o seu andar pesado e abriu-a.

Gregório apenas precisou de ouvir o primeiro bom dia do visitante para imediatamente saber quem era: o chefe de escritório em pessoa. Que sina, estar condenado a trabalhar numa firma em que a menor omissão dava imediatamente asa à maior das suspeitas! Seria que todos os empregados em bloco não passavam de malandros, que não havia entre eles um único homem devotado e leal que, tendo uma manhã perdido uma hora de trabalho na firma ou coisa parecida, fosse tão atormentado pela consciência que perdesse a cabeça e ficasse realmente incapaz de levantar-se da cama?

Não teria bastado mandar um aprendiz perguntar - se era realmente necessária qualquer pergunta -, teria que vir o próprio chefe de escritório, dando assim a conhecer a toda a família, uma família inocente, que esta circunstância suspeita não podia ser investigada por ninguém menos versado nos negócios que ele próprio? E, mais pela agitação provocada por tais reflexões do que por qualquer desejo, Gregório rebolou com toda a força para fora da cama. Houve um baque sonoro, mas não propriamente um estrondo.


A queda foi, até certo ponto, amortecida pelo tapete; também o dorso era menos duro do que ele pensava, de modo que foi apenas um baque surdo, nem por isso muito alarmante. Simplesmente, não tinha erguido a cabeça com cuidado suficiente e batera com ela; virou-a e esfregou-a no tapete, de dor e irritação.

- Alguma coisa caiu ali dentro - disse o chefe de escritório na sala contígua do lado esquerdo.Gregório tentou supor no seu íntimo que um dia poderia acontecer ao chefe de escritório qualquer coisa como a que hoje lhe acontecera a ele; ninguém podia negar que era possível. Como em brusca resposta a esta suposição, o chefe de escritório deu alguns passos firmes na sala ao lado, fazendo ranger as botas de couro envernizado. Do quarto da direita, a irmã segredava para informá-lo da situação:

- Gregório, está aqui o chefe de escritório.
Eu sei, murmurou Gregório, de si para si; mas não ousou erguer a voz o suficiente para a irmã o ouvir.

- Gregório - disse então o pai, do quarto à esquerda -, está aqui o chefe de escritório e quer saber porque é que não apanhou o primeiro trem. Não sabemos o que dizer pra ele. Além disso, ele quer falar contigo pessoalmente. Abre essa porta, faz-me o favor. Com certeza não vai reparar na desarrumação do quarto.

- Bom dia, Senhor Samsa -, saudava agora amistosamente o chefe de escritório.

- Ele não está bem - disse a mãe ao visitante, ao mesmo tempo que o pai falava ainda através da porta -, ele não está bem, senhor, pode acreditar. Se assim não fosse, ele alguma vez ia perder um trem! O rapaz não pensa senão no emprego. Quase me zango com a mania que ele tem de nunca sair à noite; há oito dias que está em casa e não houve uma única noite que não ficasse em casa.

Senta-se ali à mesa, muito sossegado, a ler o jornal ou a consultar horários de trens. O único divertimento dele é talhar madeira. Passou duas ou três noites a cortar uma moldurazinha de madeira; o senhor ficaria admirado se visse como ela é bonita. Está pendurada no quarto dele.

Num instante vai vê-la, assim que o Gregório abrir a porta. Devo dizer que estou muito satisfeita por o senhor ter vindo. Sozinhos, nunca conseguiríamos que ele abrisse a porta; é tão teimoso... E tenho a certeza de que ele não está bem, embora ele não o reconhecesse esta manhã.

- Já vou - disse Gregório, lenta e cuidadosamente, não se mexendo um centímetro, com receio de perder uma só palavra da conversa.

- Não imagino qualquer outra explicação, minha senhora - disse o chefe de escritório. - Espero que não seja nada de grave. Embora, por outro lado, deva dizer que nós, homens de negócios, feliz ou infelizmente, temos muitas vezes de ignorar, pura e simplesmente, qualquer ligeira indisposição, visto que é preciso olhar pelo negócio.

- Bem, o chefe de escritório pode entrar? - perguntou impacientemente o pai de Gregório, tornando a bater à porta.

- Não - disse Gregório. Na sala da esquerda seguiu-se um doloroso silêncio a esta recusa, enquanto no compartimento da direita a irmã começava a soluçar.

Porque não se juntava a irmã aos outros? Provavelmente tinha-se levantado da cama há pouco tempo e ainda nem começara a vestir-se. Bem, porque chorava ela? Por ele não se levantar e não abrir a porta ao chefe de escritório, por ele estar em perigo de perder o emprego e porque o patrão havia de começar outra vez atrás dos pais para eles pagarem as velhas dívidas? Eram, evidentemente, coisas com as quais, nesse instante, ninguém tinha de preocupar-se.

Gregório estava ainda em casa e nem por sombras pensava abandonar a família. É certo que, de momento, estava deitado no tapete e ninguém conhecedor da sua situação poderia seriamente esperar que abrisse a porta ao chefe de escritório. Mas, por tão pequena falta de cortesia, que poderia ser plausivelmente explicada mais tarde, Gregório não iria por certo ser despedido sem mais nem quê.


E parecia-lhe que seria muito mais sensato deixarem-no em paz por agora do que atormentá-lo com lágrimas e súplicas. É claro que a incerteza e a desorientação deles desculpava aquele comportamento.

- Senhor Samsa - clamou então o chefe de escritório, em voz mais alta -, que se passa consigo? Para aí barricado no quarto, a responder só por sins e nãos, a dar uma série de preocupações desnecessárias aos seus pais e - diga-se de passagem- a negligenciar as suas obrigações profissionais de uma maneira incrível!

Estou a falar em nome dos seus pais e do seu patrão e peco-lhe muito a sério uma explicação precisa e imediata. O senhor espanta-me, espanta-me. Julgava que o senhor era uma pessoa sossegada, em quem se podia ter confiança, e de repente parece apostado em fazer uma cena vergonhosa.


Realmente, o patrão sugeriu-me esta manhã uma explicação possível para o seu desaparecimento - relacionada com o dinheiro dos pagamentos que recentemente lhe foi confiado - mas eu quase dei a minha solene palavra de honra de que não podia ser isso.

Agora, que vejo como o senhor é terrivelmente obstinado, não tenho o menor desejo de tomar a sua defesa. E a sua posição na firma não é assim tão inexpugnável. Vim com a intenção de dizer-lhe isto em particular, mas, visto que o senhor está a tomar tão desnecessariamente o meu tempo, não vejo razão para que os seus pais não ouçam igualmente. Desde há algum tempo que o seu trabalho deixa muito a desejar; esta época do ano não é ideal para uma subida do negócio, claro, admitamos isso, mas, uma época do ano para não fazer negócio absolutamente nenhum, essa não existe, Senhor Samsa, não pode existir.

- Mas, senhor - gritou Gregório, fora de si e, na sua agitação, esquecendo todo o resto -, vou abrir a porta agora mesmo. Tive uma ligeira indisposição, um ataque de tonturas, que não me permitiu levantar-me. Ainda estou na cama. Mas me sinto bem outra vez. Estou a levantar-me agora.

Dê-me só mais um minuto ou dois! Não estou, realmente, tão bem como pensava. Mas estou bem, palavra. Como uma coisa destas pode repentinamente deitar uma pessoa abaixo. Ainda ontem à noite estava perfeitamente, os meus pais que o digam; ou, antes, de fato, tive um leve pressentimento. Deve ter mostrado indícios disso. Porque não o comuniquei eu ao escritório!

Mas uma pessoa pensa sempre que uma indisposição há de passar sem ficar em casa. Olha, senhor, poupe os meus pais! Tudo aquilo por que me repreende não tem qualquer fundamento; nunca ninguém me disse uma palavra sobre isso. Talvez o senhor não tenha visto as últimas encomendas que mandei. De qualquer maneira, ainda posso apanhar o trem das oito; estou muito melhor depois deste descanso de algumas horas. Não se prenda por mim, senhor; daqui a pouco vou para o escritório e hei de estar suficientemente bom para o dizer ao patrão e apresentar-lhe desculpas!

Ao mesmo tempo que tudo isto lhe saía tão desordenadamente de jacto que Gregório mal sabia o que estava a dizer, havia chegado facilmente à cômoda, talvez devido à prática que tinha tido na cama, e tentava agora erguer-se em pé, socorrendo-se dela. Tencionava, efetivamente, abrir a porta, mostrar-se realmente e falar com o chefe de escritório; estava ansioso por saber, depois de todas as insistências, o que diriam os outros ao vê-lo à sua frente.

Se ficassem horrorizados, a responsabilidade já não era dele e podia ficar quieto. Mas, se o aceitassem calmamente, também não teria razão para preocupar-se, e podia realmente chegar à estação a tempo de apanhar o trem das oito, se andasse depressa. A princípio escorregou algumas vezes pela superfície envernizada da cômoda, mas, aos poucos, com uma última elevação, pôs-se de pé; embora o atormentassem, deixou de ligar importância às dores na parte inferior do corpo.

Depois deixou-se cair contra as costas de uma cadeira próxima e agarrou-se às suas bordas com as pequenas pernas. isto devolveu-lhe o controlo sobre si mesmo e parou de falar, porque agora podia prestar atenção ao que o chefe de escritório estava a dizer.

- Perceberam uma única palavra? - perguntava o chefe de escritório. - Com certeza não está a tentar fazer de nós parvos?

- Oh, meu Deus - exclamou a mãe, lavada em lágrimas -, talvez ele esteja terrivelmente doente e estejamos a atormentá-lo. Grete! Grete! - chamou a seguir.

- Sim, mãe? - respondeu a irmã do outro lado. Chamavam uma pela outra através do quarto de Gregório.

- Tens de ir imediatamente chamar o médico. O Gregório está doente. Vai chamar o médico, depressa.Ouviste como ele estava a falar?

- Aquilo não era voz humana - disse o chefe de escritório, numa voz perceptivelmente baixa ao lado da estridência da mãe.

- Ana! Ana! - chamava o pai, através da parede para a cozinha, batendo as palmas -, chama imediatamente um serralheiro!

E as meninas corriam pelo corredor, com um silvo de saias - como podia a irmã ter-se vestido tão depressa?-, e abriam a porta da rua de par em par. Não se ouviu o som da porta a ser fechada a seguir; tinham-na deixado, evidentemente, aberta, como se faz em casas onde aconteceu uma grande desgraça.

Mas Gregório estava agora muito mais calmo. As palavras que pronunciava já não eram inteligíveis, aparentemente, embora a ele lhe parecessem distintas, mais distintas mesmo que antes, talvez porque o ouvido se tivesse acostumado ao som delas. Fosse como fosse, as pessoas julgavam agora que ele estava mal e estavam prontas a ajudá-lo.


A positiva certeza com que estas primeiras medidas tinham sido tomadas confortou-o. Sentia-se uma vez mais impelido para o círculo humano e confiava em grandes e notáveis resultados, quer do médico, quer do serralheiro, sem, na verdade, conseguir fazer uma distinção clara entre eles.

No intuito de tornar a voz tão clara quanto possível para a conversa que estava agora iminente, tossiu um pouco, o mais silenciosamente que pôde, claro, uma vez que também o ruído podia não soar como o da tosse humana, tanto quanto podia imaginar. Entrementes, na sala contígua havia completo silêncio. Talvez os pais estivessem sentados à mesa com o chefe de escritório, a segredar, ou talvez se encontrassem todos encostados à porta, à escuta.

Lentamente, Gregório empurrou a cadeira em direção à porta, após o que a largou, agarrou-se à porta para se amparar as plantas das extremidades das pequenas pernas eram levemente pegajosas - e descansou, apoiado contra ela por um momento, depois destes esforços. A seguir empenhou-se em rodar a chave na fechadura, utilizando a boca. Infelizmente, parecia que não possuía quaisquer dentes - com que havia de segurar a chave?-, mas, por outro lado, as mandíbulas eram indubitavelmente fortes; com a sua ajuda, conseguiu pôr a chave em movimento, sem prestar atenção ao fato de estar certamente a danificá-las em qualquer zona, visto que lhe saía da boca um fluído castanho, que escorria pela chave e pingava para o chão.


- Ouçam só - disse o chefe de escritório na sala contígua -; esta dando volta na chave.
Isto foi um grande encorajamento para Gregório; mas todos deviam tê-lo animado com gritos de encorajamento, o pai e a mãe também: Não, Gregório, deviam todos ter gritado, - Continua, agarra-te bem a essa chave!

E, na crença de que estavam todos a seguir atentamente os seus esforços, cerrou imprudentemente as mandíbulas na chave com todas as forças de que dispunha. À medida que a rotação da chave progredia, ele torneava a fechadura, segurando-se agora só com a boca, empurrando a chave, ou puxando-a para baixo com todo o peso do corpo, consoante era necessário.


O estalido mais sonoro da fechadura, finalmente a ceder, apressou literalmente Gregório. Com um fundo suspiro de alívio, disse, de si para si:Afinal, não precisei do serralheiro, e encostou a cabeça ao puxador, para abrir completamente a porta.
Como tinha de puxar a porta para si, manteve-se oculto, mesmo quando a porta ficou escancarada.


Teve de deslizar lentamente para contornar a portada mais próxima da porta dupla, manobra que lhe exigiu grande cuidado, não fosse cair em cheio de costas, mesmo ali no limiar. Estava ainda empenhado nesta operação, sem ter tempo para observar qualquer outra coisa, quando ouviu o chefe de escritório soltar um agudo Oh!,


Que mais parecia um rugido do vento; foi então que o viu, de pé junto da porta, com uma mão a tremer tapando a boca aberta e recuando, como se impelido por qualquer súbita força invisível. A mãe, que apesar da presença do chefe de escritório tinha o cabelo ainda em desalinho, espetado em todas as direções, começou por retorcer as mãos e olhar para o pai, após o que deu dois passos em direção a Gregório e tombou no chão, num torvelinho de saias, o rosto escondido no peito.


O pai cerrou os punhos com um ar cruel, como se quisesse obrigar Gregório a voltar para o quarto com um murro; depois, olhou perplexo em tomo da sala de estar, cobriu os olhos com as mãos e desatou a chorar, o peito vigoroso sacudido por soluços.


Gregório não entrou na sala, mantendo-se encostado à parte interior da portada fechada, deixando apenas metade do corpo à vista, a cabeça a tombar para um e outro lado, por forma a ver os demais. Entretanto, a manhã tornara-se mais límpida. Do outro lado da rua, divisava-se nitidamente uma parte do edifício cinzento-escuro, interminavelmente comprido, que era o hospital, abruptamente interrompido por uma fila de janelas iguais.

Chovia ainda, mas eram apenas grandes pingos bem visíveis que caíam literalmente um a um. Sobre a mesa espalhava-se a louça do breve almoço, visto que esta era para o pai de Gregório a refeição mais importante, que prolongava durante horas percorrendo diversos jornais. Mesmo em frente de Gregório, havia uma fotografia pendurada na parede que o mostrava fardado de tenente, no tempo em que fizera o serviço militar, a mão na espada e um sorriso despreocupado na face, que impunha respeito pelo uniforme e pelo seu porte militar.

A porta que dava para o vestíbulo estava aberta, vendo-se também aberta a porta de entrada, para além da qual se avistava o terraço de entrada e os primeiros degraus da escada.
- Bem - disse Gregório, perfeitamente consciente de ser o único que mantinha uma certa compostura -, vou me vestir, embalar as amostras e sair.

Desde que o senhor me dê licença que saia. Como vê, não sou obstinado e tenho vontade de trabalhar. A profissão de caixeiro - viajante é dura, mas não posso viver sem ela. Para onde vai o senhor? Para o escritório? Sim? Não se importa de contar lá exatamente o que aconteceu? Uma pessoa pode estar temporariamente incapacitada, mas essa é a altura indicada para recordar os seus serviços anteriores e ter em mente que mais tarde, vencida a incapacidade, a pessoa certamente trabalhará com mais diligência e concentração. Tenho uma dívida de lealdade para com o patrão, como o senhor bem sabe.

Além disso, tenho de olhar pelos meus pais e pela minha irmã. Estou a passar por uma situação difícil, mas acabarei vencendo. Não me torne as coisas mais complicadas do que elas já são. Eu bem sei que os caixeiros-viajantes não são muito bem vistos no escritório. As pessoas pensam que eles levam uma vida estupenda e ganham rios de dinheiro. Trata-se de um preconceito que nenhuma razão especial leva a reconsiderar.


Mas o senhor vê as coisas profissionais de uma maneira mais compreensiva do que o resto do pessoal, isso vê, aqui para nós, deixe que lhe diga, mais compreensiva do que o próprio patrão, que, sendo o proprietário, facilmente se deixa influenciar contra qualquer dos empregados. E o senhor bem sabe que o caixeiro-viajante, que durante todo o ano raramente está no escritório, é muitas vezes vítima de injustiças, do azar e de queixas injustificadas, das quais normalmente nada sabe, a não ser quando regressa, exausto das suas deslocações, e só nessa altura sofre pessoalmente as suas funestas conseqüências; para elas, não consegue descobrir as causas originais.Peço-lhe, por favor, que não se vá embora sem uma palavra sequer que mostre que me dá razão, pelo menos em parte!


Logo às primeiras palavras de Gregório, o chefe de escritório recuara e limitava-se a fitá-lo embasbacado, retorcendo os lábios, por cima do ombro crispado. Enquanto Gregório falava, não estivera um momento quieto, procurando, sem tirar os olhos de Gregório, esgueirar-se para a porta, centímetro a centímetro, como se obedecesse a qualquer ordem secreta para abandonar a sala. Estava junto ao vestíbulo, e a maneira súbita como deu um último passo para sair da sala de estar levaria a crer que tinha posto o pé em cima duma brasa. Chegado ao vestíbulo, estendeu o braço direito para as escadas, como se qualquer poder sobrenatural ali o aguardasse para libertá-lo.


Gregório apercebeu-se de que, se quisesse que a sua posição na firma não corresse sérios riscos não podia de modo algum permitir que o chefe de escritório saísse naquele estado' de espírito. Os pais não ligavam tão bem deste acontecimento; tinham-se convencido, ao longo dos anos, de que Gregório estava instalado na firma para toda a vida e, além disso, estavam tão consternados com as suas preocupações imediatas que nem lhes corria pensar no futuro. Gregório, porém, pensava. Era preciso deter, acalmar, persuadir e, por fim, conquistar o chefe de escritório. Quer o seu futuro, quer o da família, dependiam disso! Se, ao menos, a irmã ali estivesse! Era inteligente; começara a chorar quando Gregório estava ainda deitado de costas na cama. E por certo o chefe de escritório, parcial como era em relação às mulheres, acabaria se deixando levar por ela.


Ela teria fechado a porta de entrada e, no vestíbulo, dissiparia o horror. Mas ela não estava e Gregório teria de enfrentar sozinho a situação. E, sem refletir que não sabia ainda de que capacidade de movimentos dispunha, sem se lembrar sequer de que havia todas as possibilidades, e até todas as probabilidades, de as suas palavras serem mais uma vez ininteligíveis, afastou-se do umbral da porta, deslizou pela abertura e começou a encaminhar-se para o chefe de escritório, que estava agarrado com ambas as mãos ao corrimão da escada para o terraço; subitamente, ao procurar apoio, Gregório tombou, com um grito débil, por sobre as inúmeras pernas.

Mas, chegado a essa posição, experimentou pela primeira vez nessa manhã uma sensação de conforto físico. Tinha as pernas em terra firme; obedeciam-lhe completamente, conforme observou com alegria, e esforçavam-se até por impeli-lo em qualquer direção que pretendesse.

Sentia-se tentado a pensar que estava ao seu alcance um alívio final para todo o sofrimento. No preciso momento em que se encontrou no chão, balançando-se com sofrida ânsia para mover-se, não longe da mãe, na realidade mesmo defronte dela, esta, que parecia até aí completamente aniquilada, pôs-se de pé de um salto, de braços e dedos estendidos, aos gritos: Socorro, por amor de Deus, socorro! Baixou a cabeça, como se quisesse observar melhor Gregório, mas, pelo contrário, continuou a recuar disparadamente e, esquecendo-se de que tinha atrás de, si a mesa ainda posta, sentou-se precipitadamente nela, como se tivesse perdido momentaneamente a razão, ao esbarrar contra o obstáculo imprevisto.


Parecia igualmente indiferente ao acontecimento de a cafeteira que tinha ter tombado e estava derramando um fio sinuoso de café no tapete.

- Mãe, mãe - murmurou Gregório, erguendo a vista para ela.

Nessa altura, o chefe de escritório estava já completamente tresloucado; Gregório, não resistiu ao ver o café a correr, cerrou as mandíbulas com um estalo. Isto fez com que a mãe gritasse outra vez, afastando-se precipitadamente da mesa e atirando-se para os braços do pai, que se apressou a acolhê-la.Mas agora Gregório não tinha tempo a perder com os pais. O chefe de escritório nas escadas; com o queixo apoiado no corrimão, dava uma última olhadela para trás de si.

Gregório deu um salto, para ter melhor a certeza de ultra - passá-lo; o chefe de escritório devia ter-lhe adivinhado as intenções, pois, de um salto, venceu vários degraus e desapareceu, sempre aos gritos, que ressoavam pelas escadas.


Infelizmente a fuga do chefe de escritório pareceu pôr o pai de Gregório completamente fora de si, embora até então se tivesse mantido relativamente calmo. Assim, em lugar de correr atrás do homem ou de, pelo menos, não interferir na perseguição de Gregório, agarrou com a mão direita na bengala que o chefe de escritório tinha deixado numa cadeira, juntamente com um chapéu e um sobretudo, e, com a esquerda, num jornal que estava em cima da mesa e, batendo com os pés e brandindo a bengala e o jornal, tentou forçar Gregório a regressar ao quarto.



De nada valeram os rogos de Gregório, que, aliás, nem sequer eram compreendidos; por mais que baixasse humildemente a cabeça, o pai limitava-se a bater mais fortemente com os pés no chão.

Por trás do pai, a mãe tinha escancarado uma janela, apesar do frio, e debruçava-se a ela segurando a cabeça com as mãos. Uma rajada de vento penetrou pelas escadas, agitando as cortinas da janela e agitando os jornais que estavam sobre a mesa, o que fez que se espalhassem algumas páginas pelo chão. Impiedosamente, o pai de Gregório obrigava-o a recuar, assobiando e gritando como um selvagem. Mas Gregório estava pouco habituado a andar para trás, o que se revelou um processo lento.


Se tivesse uma oportunidade de virar sobre si mesmo, poderia alcançar imediatamente o quarto, mas receava exasperar o pai com a lentidão de tal manobra e temia que a bengala que o pai brandia na mão pudesse desferir-lhe uma pancada fatal no dorso ou na cabeça.Finalmente, reconheceu que não lhe restava alternativa, pois verificou, aterrorizado, que, ao recuar, nem sequer conseguia controlar a direção em que se deslocava-se, assim, sempre observando ansiosamente o pai, de soslaio, começou a virar o mais rapidamente que pôde, o que, na realidade, era muito moroso.

Talvez o pai tivesse registrado as suas boas intenções, visto que não interferiu, a não ser para, de quando em quando e à distância, lhe auxiliar a manobra com a ponta da bengala. Se ao menos ele parasse com aquele insuportável assobio! Era uma coisa que estava a pontos de fazê-lo perder a cabeça. Quase havia completado a rotação quando o assobio o desorientou de tal modo que tornou a virar ligeiramente na direção errada.


Quando, finalmente, viu a porta em frente da cabeça, pareceu-lhe que o corpo era demasiadamente largo para poder passar pela abertura. É claro que o pai, no estado de espírito atual, estava bem longe de pensar em qualquer coisa que se parecesse com abrir a outra portada, para dar espaço à passagem de Gregório.

Dominava-o a idéia fixa de fazer Gregório regressar para o quarto o mais depressa possível. Não agüentaria de modo algum que Gregório se entregasse aos preparativos de erguer o corpo e talvez deslizar através da porta.

Nesta altura, o pai estava porventura a fazer mais barulho que nunca para obrigá-lo a avançar, como se não houvesse obstáculo nenhum que o impedisse; fosse como fosse, o barulho que Gregório ouvia atrás de si não lhe soava aos ouvidos como a voz de pai nenhum. Não sendo caso para brincadeiras, Gregório lançou-se, sem se preocupar com as conseqüências, pela abertura da porta.


Um dos lados do corpo ergueu-se e Gregório ficou entalado no umbral da porta ferindo-se no flanco, que cobriu a porta branca de horrorosas manchas. Não tardou em ficar completamente preso, de tal modo que, por si só, não poderia mover-se, com as pernas de um dos lados a agitarem-se tremulamente no ar e as do outro penosamente esmagadas de encontro ao soalho.


Foi então que o pai lhe deu um violento empurrão, que constituiu literalmente um alívio, e Gregório voou até ao meio do quarto, sangrando abundantemente. Empurrada pela bengala, a porta fechou-se violentamente atrás de si e, por fim, fez-se o silêncio.

domingo, fevereiro 04, 2007

As abobrinhas dos doutores Tucanos

ELIO GASPARI

O viés dos juízes pelos pobres é lenda

Num litígio judicial com o andar de baixo, o de cima tem até 45% mais chances de prevalecer
DOIS ADVOGADOS DA Universidade de São Paulo deram um tiro na testa da teoria segundo a qual o Judiciário está entre os produtores de uma "incerteza jurisdicional" que favorece o andar de baixo, inibe o crédito e o funcionamento do capitalismo em Pindorama. A trava foi apontada em 2004 num trabalho de três marqueses das ekipekonômicas: Pérsio Arida, Edmar Bacha e André Lara Resende, todos com carreiras de sucesso na academia e na banca.



A "incerteza jurisdicional" derivaria, entre outros fatores, de um viés dos juízes, que buscam promover a justiça social em litígios relacionados com o crédito e o respeito aos contratos. A teoria amparou-se numa pesquisa feita na elite. Dirigida por Bolívar Lamounier, mostrou que 61% dos juízes entrevistados preferiam decidir a favor dos fracos. Outra, específica, de Armando Castellar, com um universo de 741 magistrados, confirmou o achado: a defesa da justiça social deve prevalecer na defesa do consumidor (55,4%) e nos contratos trabalhistas (45,8%). Lamounier e Castellar retrataram o que os juízes gostariam de fazer (ou gostariam que se dissesse que fazem).

Ivan César Ribeiro e Brisa Lopes de Mello Ferrão, da Universidade de São Paulo, testaram a premissa da tese e foram ver o que acontece na vida real. Estudaram amostras de 181 decisões judiciais de São Paulo e outras 84 de 16 Estados. Lidaram com cálculos arcanos, como modelos de regressão e de análise binária, vulgo Probit. (Noves fora José Luís Bulhões Pedreira, morto em outubro, advogado que sabe matemática é raro como selo Olho-de-Boi.)


As pesquisas geraram dois trabalhos, um assinado pelos dois e outro, mais extenso, de Ribeiro. Resultou que se dois litigantes buscam a proteção de uma mesma lei, aquele que está no andar de cima tem até 45% mais chances de sair vitorioso. Se o contrato favorece o forte, tende a prevalecer. Quando favorece o fraco, esgarça. Ribeiro, que teve o seu trabalho premiado pelo Ipea, foi mais longe: quando uma das partes pertence ao andar de cima local, tem entre 26% e 38% mais chances de prevalecer do que um grande grupo nacional ou internacional. Ele chamou esse fenômeno de "subversão paroquial da justiça".

Numa terceira constatação, mostrou que, quanto maior a desigualdade social numa região, maior é o conforto do poderoso. A chance de um cidadão de Santa Catarina conseguir a proteção de uma cláusula contratual num litígio com o andar de cima é três vezes maior do que a de um alagoano.

Em bom português: "Não existe o favorecimento da parte mais fraca, ou seja, não há nenhuma evidência da aplicabilidade da hipótese da incerteza jurisdicional de Arida". Em São Paulo, o Código de Defesa do Consumidor não protegeu uma cidadã contra um banco no caso de um contrato de financiamento de veículo. Já no Maranhão, o mesmo Código amparou uma empresa local que não pagou uma dívida de US$ 2,3 milhões. A outra parte era forte, mas na Suíça. Descrita desse jeito, a pesquisa pode parecer uma pretensiosa transformação do pesquisador em instância de revisão judicial. O valor do trabalho está nos cálculos em quais se ampara, calafetando desvios da amostra, testando hipóteses e resultados. No que se refere ao



Judiciário, quem inibe o progresso econômico e social não é uma incerteza jurisdicional resultante de um favorecimento do andar de baixo. É a velha e boa "subversão paroquial" que privilegia o andar de cima do mundinho onde corre o litígio.
Serviço: Os dois trabalhos estão na internet e são contra-indicados como leitura de fim de semana.

"Os Juízes Brasileiros Favorecem a Parte Mais Fraca?" (Brisa Lopez de Mello Ferrão e Ivan César Ribeiro): http://repositories.cdlib.org/bple/alacde/26
"Robin Hood Versus King John: Como os Juízes Locais Decidem Casos no Brasil?" (Ivan César Ribeiro): http://getinternet.ipea.gov.br/ipeacaixa/premio2006/docs/trabpremiados/IpeaCaixa2006-Profissional-01lugar-tema01.pdf (A versão em inglês dá menos trabalho. Basta passar no Google "Ivan Ribeiro Robin Hood")

Jornalistas Tucanizados

Como eu sou um idiota, como quase todos, com raras excessões, eu republico este post do blog do Mino Carta, que com certeza, não é um idiota. Alías um dos últimos gênios do jornalismo que sobraram.




Jornalistas tucanizados

Há vinte, ou mais anos, ele se dizia de esquerda, e, às vezes, achava-se sincero. Por algum tempo experimentou alguma simpatia pelo PT. Ele é, porém, camaleônico e acabou por aderir à fé dos patrões. Entende que o Brasil dele é quase perfeito, o Brasil dos outros não interessa.

Declara ter lido boa parte, no mínimo, da monumental obra de Fernando Henrique Cardoso, e considera José Serra o maior economista do hemisfério sul. Ganha mais do que seus colegas de outras terras, troca de carro (ou carros) com freqüência, sua residência oferece espaço e conforto, goza de férias em recantos aprazíveis e aspira voluptuosamente o perfume do vinho ao girá-lo dentro do copo Riddel com mão esperta.

Não hesita em crer que Daniel Dantas é o admirável protótipo do banqueiro bem sucedido, alguém que sabe das coisas, e como sabe. Enxerga em Hugo Chávez um perigoso populista de quinta e em Evo Morales um aproveitador da fraqueza de Lula.

O qual não passa de um matreiro ignorante de arrabalde. Este é, sumariamente traçado, o perfil do jornalista tucanizado. Digo, aquele que chegou lá e de quem o patrão aperta a mão com efusão. Enxames de jovens invejam-no e se empenham a lhe seguir os passos.

As redações nativas pululam de uns e outros. Trata-se dos azeitados instrumentos usados pelos senhores da mídia para imbecilizar a nação. Tentam, pelo menos. A reeleição de Lula foi para eles grave revés, mas são resistentes e, impávidos, voltam à carga. Entende-se que não lhes procuro a companhia. Pelo contrário, basta vê-los ao longe e dou no pé.

enviada por mino

EU também dou no pé Mino.